Cidade Contínua: investigações para uma São Paulo mais acolhedora

A desigualdade que marca a nossa sociedade é refletida no espaço urbano. Assim, a vivência plena da cidade é uma realidade para apenas uma parcela da população, questionando a ideia do espaço público como um local plenamente democrático. 

Essa reflexão traz consigo a urgência de serem estabelecidas propostas que possibilitem cidades mais acolhedoras nos debates da arquitetura e do urbanismo contemporâneo.

Nesse sentido, o urbanismo feminista e o cronourbanismo são duas diretrizes do planejamento urbano que se aprofundam em acolher a pluralidade social e uma maior flexibilidade dos horários cotidianos.

A transposição dessas diretrizes urbanas do campo teórico para a prática projetual em grandes cidades, como é o caso de São Paulo, é algo necessário e muito complexo pois as desigualdades sociais somam-se aqui as grandes distinções socioespaciais entre a região central e as áreas periféricas, por consequência das suas dimensões, contingente populacional, formação histórica, aspectos físicos, concentração de investimentos, planejamento urbano, entre outros fatores.

(...) apesar de o mosaico urbano da metrópole paulistana ser hoje muito mais complexo, observa-se que a relação centro-periferia continua presente, decisivamente, no modo como os paulistanos pensam a cidade e se relacionam um com os outros. Antes de ser apenas um lugar físico, a periferia persiste como lugar simbólico importante em um sistema de relações cujo pólo dominante é o centro. A distância – física e social – em relação ao centro define nossa posição não só socioeconômica, como também hierárquica na simbologia da cidade. E, nesse sentido, a relação centro-periferia continua fundamental para todo planejamento que busque dialogar com as desigualdades sociais da cidade. — RNSP, 2016

Vivenciar um cenário urbano como o de São Paulo é uma experiência muito distinta dependendo da raça, condição social e gênero do indivíduo, bem como as funções sociais que lhes são encarregadas.

Dentre as diversas entradas de ação, o urbanismo feminista sugere proposições inclusivas do ponto de vista de gênero, pois sua presença carrega diversas responsabilidades, tanto por outros corpos - idosos, crianças, pessoas com necessidades especiais - quanto de espaços distintos, como o doméstico e o público.

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Diagrama das funções sociais atribuídas às mulheres. Produção por Lais Silva

Existem vários grupos que têm atuado a partir da perspectiva de gênero em diversas escalas da arquitetura e do urbanismo. Apesar de inseridos em diferentes contextos, são estabelecidas diretrizes em comum que giram entorno de questões fundamentais, como a mobilidade, a relação entre o espaço privado e o público, programas de apoio básico, criação de zonas multifuncionais e acessibilidade. 

A partir dessas questões, propõem-se estratégias para a criação de atmosferas espaciais. O aumento da sensação de segurança, a ampla acessibilidade, a flexibilização das atividades cotidianas são parte dos objetivos finais na busca por locais mais democráticos. 

Além de uma maior pluralidade social, a relação temporal é uma outra abordagem necessária ao se buscar cidades mais acolhedoras. Os horários do cotidiano estão se tornando cada vez mais flexíveis e amplos, fazendo com que as distinções entre dia e noite sejam menos rígidas e que exista uma continuidade maior entre as dinâmicas dos dois períodos.

Essa maior flexibilização dos horários traz consequências diretas nas necessidades urbanas das pessoas. Defender o direito à cidade também envolve a questão temporal e a necessidade de poder utilizá-la também durante à noite.

Apesar de a continuidade entre o dia e noite ser cada vez mais presente, a vivência na cidade é muito distinta. Em alguns aspectos essa diferenciação é necessária e positiva, pois evita uma banalização do ritmo diurno durante a noite. Ela que define o caráter noturno como locais de maior liberdade, menos regras de comportamento, espaços de experimentação e com a capacidade de abranger públicos mais diversos. As grandes dificuldades encontradas durante a noite, que limitam seu potencial são consequência da falta de apoios básicos que dificulta as pessoas a transitarem pela cidade. A insegurança, ausência de iluminação em alguns locais, pouca mobilidade e serviços básicos, faz com que muito não tenham condições de enfrentar a cidade nesse período. 

Outra questão que limita a vivência noturna na cidade é o custo. A maioria dos espaços públicos ou de acesso gratuito não funcionam 24 horas, deixando a noite à mercê dos lugares pagos, limitando o lazer a cultura a quem tenha condições de arcar com o gasto. 

Vale ressaltar que quando se afirma a necessidade de planejar uma cidade também pensada para a noite, o que se defende não é uma cidade completamente ativa 24 horas por dia. O que se busca é garantir o direito das pessoas que querem vivenciar a cidade no período noturno, fornecendo condições para que isso possa ser efetivado. 

Uma sugestão do “Manifesto da Noite - em busca de uma cidadania 24h” é a criação dos “oásis de tempo contínuo” que seriam locais que oferecessem serviços públicos e privados também durante a noite, para que seja possível conciliar os direitos dos cidadãos que “dormem, trabalham e se divertem”, fazendo com que todos sejam favorecidos.

O desenvolvimento de polos de serviço abertos 24 horas por dia e 7 dias por semana com acesso aos espaços de fluxo (estações de metrô, postos de serviço…) é uma prioridade. A maioria dos serviços públicos e privados estaria assegurado a partir desses polos de tempo contínuo bem distribuídos na cidade misturando as funções da cidade de guarda (segurança, saúde…) e outras funções atualmente ausentes ou reduzidas durante a noite: comércios de alimentos e de roupas, cultura, restaurantes, transportes públicos, administração, religião ou lazer e até certos aspectos educativos ou políticos em lugares de fluxos vivos que não incomodam a cidade que dorme. — CoLaboratório, 2014.

Essa proposição da criação do “oásis do tempo contínuo” é uma forma de transpor as diretrizes debatidas no campo teórico para a prática projetual. Propor diretrizes de planejamento urbano para São Paulo que tem uma alta densidade construtiva e dinâmicas sociais já bastante estabelecidas deve ser feito de forma a respeitar e dialogar com as preexistências. 

Assim, é possível pensar essa proposição urbana a partir de uma rede de equipamentos presentes ao longo de toda a cidade, desde as periferias até a região central. Para isso, é necessário consagrar a importância das centralidades regionais existentes principalmente nas regiões periféricas.

Essas centralidades são áreas de importância local que concentram atividades de comércio, lazer e serviços e que geralmente estão próximas aos eixos de transporte coletivo. Elas são contempladas e definidas no Plano Diretor Estratégico do Município de São Paulo (Lei número 16.050/14) como "porções do território do Município que concentram atividades terciárias, em especial comércio e serviços, que devem ser qualificadas e fortalecidas" (PDE, 2014. p. 102) no Título III "Das Políticas e dos Sistemas Urbanos e Ambientais", Seção II "Centralidades Polares e Lineares".

O estabelecimento dessa rede presente em toda a cidade está muito alinhado com as proposições apontadas pelo urbanismo feminista e pelo cronourbanismo, que muitas vezes se baseiam em pequenos aperfeiçoamentos no desenho e na priorização de programas específicos ao longo da cidade. O respeito com relação às preexistências, tanto físicas quanto das pessoas que vivem naqueles espaços, é visto como fundamental nos processos de análise e execução do projeto. 

Com isso, o conceito de “oásis do tempo contínuo” vai de encontro com o termo “Território Capaz”. Esse termo foi criado junto com a Metodologia Plus pelos arquitetos Anne Lacaton, Jean-Philippe Vassal e Frédéric Druot, coordenador da Plataforma Plus – plataforma de estudos e levantamentos da Vila Buarque e do Bixiga – na Escola da Cidade em São Paulo junto com as arquitetas e professoras Fernanda Barbara e Camille Bianchi e com o sociólogo e professor José Guilherme Pereira Leite.

A metodologia Plus tem como premissa “transformar ao invés de demolir”, ou seja, utilizar as estruturas preexistentes na cidade e nas edificações de forma a tirar maior proveito delas. Para que isso se consolide, a compreensão de quais são os “territórios capazes” de receber transformações que sejam respeitosas com o entorno de forma a potencializar o espaço já existente é fundamental para que a intervenção seja realizada. Com isso, esse território capaz pode ser dos mais variados tipos e escalas dependendo do contexto social em que ele está inserido.

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Diagrama do estabelecimento de uma rede na cidade de São Paulo. Produção por Lais Silva

Existem inúmeros locais potenciais em São Paulo para acolher os equipamentos que compõem essa proposta urbana. Com intuito de buscar um desses territórios capazes, essa investigação compreendeu que os lotes que abrigam os postos de combustíveis têm um enorme potencial a ser explorado. 

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Lotes contaminados por postos de combustíveis na cidade de São Paulo em 2013. Fonte: SMUL / CETESB, 2013. Produção por Lais Silva

Isso porque, apesar do carro individual ainda ser amplamente utilizado, vários lotes que antes eram ocupados por postos de combustíveis estão se tornando subutilizados. De acordo com uma pesquisa realizada pela BCG (Boston Consulting Group), daqui 15 anos a comercialização de combustíveis fósseis diminuirá ao ponto de 80% dos postos não serem mais rentáveis até 2035. 

Assim como os postos de combustíveis, outras futuras “ruínas urbanas” presentes de forma massiva nas cidades devem ser compreendidas justamente como esses “territórios capazes” de abrigarem equipamentos estratégicos para a consolidação de cidades mais acolhedoras e respeitosas com as preexistências. 

Assim, para que a proposição seja coerente com as diretrizes urbanas apresentadas, é necessário pensar esses novos equipamentos a partir do diálogo com o entorno imediato e com uma rede urbana presente em toda a cidade. As diretrizes de um planejamento urbano a partir da perspectiva de gênero e de um direito à cidade 24 horas apresentam estratégias pontuais de intervenção na cidade, ou seja, aproximações compatíveis com o cenário urbano existente. 

Vale ressaltar que isso é algo fundamental para a criação de espaços democráticos e com a real capacidade de abranger a pluralidade social existente. Para isso, aplicar as diretrizes urbanas apontadas pelo urbanismo feminista e pelo cronourbanismo é o caminho para possibilitar essa realidade em São Paulo.

Olhar para as perspectivas diversas que vêm sendo desenvolvidas no âmbito da arquitetura e do urbanismo e compreender como estas estratégias podem ser implementadas em diálogo com os contextos sociais e urbanos já estabelecidos é um caminho possível para a efetivação de cidades mais acolhedoras. 

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Cidade contínua. Colagem cidade contínua pela perspectiva de gênero. Produção por Lais Silva

Referências bibliográficas
COLABORATÓRIO, Grupo interdisciplinar. Manifesto da noite: em busca de uma cidadania 24h. Invisíveis Produções, 2014. Acesso em: 31 de outubro de 2019.
COLLECTIU PUNT6. Acesso em: 21 nov. 2017.
DRUOT, Frédéric; LACATON, Anne; VASSAL, Jean-Philippe.“Plus”. Barcelona: Editorial Gustavo Gili,SL, 2007.
GoArchitect. Gas Station of the Future: Design Competition Acesso em: 30 out. 2019.
OLIVEIRA, Heloísa. Espaço público pra quem? Reflexões sobre a perspectiva de gênero na arquitetura e no urbanismo. Trabalho de Conclusão de Curso, 2017. Associação Escola da Cidade. Acesso em: 30 out. 2019.
REDE NOSSA SÃO PAULO. RNSP. Acesso em: 31 out. 2019.
SANTORO, Paula Freire. Gênero e Planejamento Territorial: uma aproximação.

Trabalho de Conclusão de Curso realizado na Escola da Cidade em 2019, com orientação da professora, arquiteta e urbanista Ligia Miranda. Lais Silva é arquiteta e urbanista pela Escola da Cidade (2019). Realizou a pesquisa experimental “Bixiga + Teatro Oficina” entre agosto de 2017 e julho de 2018. Fez estágios nos escritórios “Archikubik”(2018) e “aGRau” (2019). Atualmente é arquiteta no escritório “Readymake”.

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Sobre este autor
Cita: Lais Maiara Pereira Silva. "Cidade Contínua: investigações para uma São Paulo mais acolhedora " 24 Ago 2020. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/946223/cidade-continua-investigacoes-para-uma-sao-paulo-mais-acolhedora> ISSN 0719-8906

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